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As implicações Sociais de uma filosofia mal-entendida

  • Foto do escritor: Jaime Silva
    Jaime Silva
  • 23 de ago. de 2018
  • 14 min de leitura

Texto escrito a quatro mãos...

com a ajuda inestimável de Julliana Soares.


Uma coisa sou eu, outra coisa são meus escritos. Aqui, antes que eu fale deles próprios, seja tocada a questão do entendimento ou não-entendimento desses escritos.


Acredito, e sem me abstrair muito da realidade, que a maioria das pessoas que inicia a leitura de Nietzsche e começa a entender alguns conceitos e do que ele está falando pensa logo: se eu não sou o além-homem estou para sê-lo (válido para a além-mulher também). Estas mesmas pessoas, costumeiramente adentram o universo nietzscheano através de sua obra prima Assim Falava Zaratustra. Esta por sua vez é conhecida pelos especialistas como a obra mais complexa e intrigante do filósofo. É esse o primeiro erro para o buraco sem fundo das interpretações que, não raro, incorrem em contradição.


Diante da diversidade de estilos na escrita nietzschiana e dos vários assuntos abordados em sua obra fica fácil confundi-lo. O próprio Nietzsche previu esse acontecimento e deixou o seu apelo:

“Uma coisa sou eu, outra coisa são meus escritos. Aqui, antes que eu fale deles próprios, seja tocada a questão do entendimento ou não-entendimento desses escritos. Faço displicentemente quanto convêm, de qualquer modo: pois essa pergunta ainda não está no tempo. Eu próprio ainda não estou no tempo, alguns nascem póstumos”. Ecce Homo


Nietzsche foi um homem de muitas facetas. O filósofo-músico-ateu-pop-polêmico-literário-louco-gênio-humano, demasiado humano. E cabe a pergunta: Quantos adjetivos fazem jus a sua pessoa e a sua obra? Como ele mesmo colocou como subtítulo desta obra ele escrevia “para todos e para ninguém” e conseguiu ser lido por ambos. Eis que surge o primeiro ponto que gostaríamos de tratar: para quem o Bigode escrevia? Alguns filósofos escrevem para a “humanidade”, sabe-se lá o que essa entidade quer dizer e outros escrevem para as pessoas, sabe-se lá também quem são essas pessoas. Na grande maioria, os filósofos escrevem no intuito de serem lidos por todo mundo e mostrar uma verdade que ninguém viu, ou até mesmo mudar o mundo. Contudo, acabam sendo lidos por outros pouquíssimos filósofos. Diferente da maioria, nosso querido Bigode acabou sendo lido por muitas pessoas, além dos filósofos acadêmicos ele ganhou olhares fora da academia.


Como se diz ele virou “Pop”. É aí que começa o buraco sem fundo das interpretações. E eis também onde mora o perigo: fazer de Nietzsche mais uma Verdade absoluta e cair num fanatismo. E pior ainda se houver uma má interpretação. Como todo escritor ele precisa ser contextualizado porque toda sua escrita estará transpassada pelo seu tempo e história de vida (personalidade). Quando alguém une esse fanatismo com a interpretação que lhe convém, fica complicado. Tão complicado que é possível se valer do Nietzsche para justificar algumas vulgaridades, ou encontrar pessoas que frequentam o culto da Assembleia de Deus e costumam citar algumas frases do Zaratustra. Vemos desde padres citando “Deus está morto” e dando o seu jeito de se sair da frase até um novo moralismo-individualista-imanente. Há quem se utilize do filósofo para justificar o uso de drogas e também para não usar drogas. Isso dá um nó na nossa cabeça!


Existe, porém, um ponto que é possível ser mais concreto nos escritos e no intuito dos livros de Nietzsche. Este ponto era o individualismo. Apesar de ter ocorrido uma devastação na civilização ocidental de modo geral, os seus conceitos e críticas eram voltados para a vida de pessoas individuais, deixando de lado nacionalidades, classes sociais ou grupos. Os problemas e críticas que ele tratou serviam na sua maioria para o indivíduo. Nisto ele foi até visionário em relação ao relativismo dos pós-modernos. Eis que surge um primeiro uso “mal” intencionado de sua filosofia: Quando os interesses sociais (ou de classe) são fragmentados em interesses individuais ou de pequenos grupos ao longo do século XX, uma filosofia voltada para problemas individuais cai muito bem.



Individual e social – para quem Nietzsche estava escrevendo e para quem serviu


Neste sentido a filosofia dele serve politicamente para teorias sociais que deixam de fora o lado social do mundo. Estas teorias sociais estão carregadas de intencionalidades, inclusive ideológicas. Falamos em ideológicas no sentido de encobrir uma parte da realidade, intencionalmente, e revelar apenas outra para não mostrar a origem de problemas sociais, por exemplo. Dado que não se observa escritos mais diretivos sobre as chamadas mazelas sociais, sua filosofia veio a ser inofensiva politicamente, até mesmo útil. Ele viveu depois da revolução francesa onde as pessoas mataram o rei por que estavam passando fome. Viveu e se beneficiou de algumas mudanças sociais. Este posicionamento do lado do individualismo visto pelo lado político coloca os problemas sociais como sendo causados pelo indivíduo (no singular mesmo) e a solução também deveria partir do indivíduo. Neste caso, da superação da moral dos fracos, superação do niilismo e abertura de caminhos para o além-homem. Além do mais, seu posicionamento político não é muito claro; ele parece desacreditar da chamada política no sentido usual de decisões tomadas que pretendem mudar a vida da maioria da população. A interpretação iria para uma política levada pelo indivíduo.



Por outro lado, Nietzsche deixa críticas referentes a utilização da cultura para obtenção de lucro como um modo decadente de vida. O funcionário (trabalhador) é um escravo impossibilitado de criar, algemado na necessidade do trabalho para sobreviver e o produtor (empregador) seria um homem de espírito pequeno na medida em que atrela a sua felicidade a necessidade de lucro. De certa forma o mal-uso de sua filosofia é intencional ao deixar de lado tais posicionamentos.


Tem uma história que diz mais ou menos assim: “Ao escrever um texto temos dois sujeitos: o escritor e o leitor. Quando a mensagem do texto não é compreendida, um dos dois é burro. No caso da não compreensão, suspeite sempre o escritor” Esta suspeita se baseia na hipótese que o escritor costuma superestimar a capacidade de compreensão de seu leitor, ademais acreditar que seu texto está muito bem escrito. Neste último caso o texto do Bigode deixa muitas margens para diversas interpretações. Não que ele não esteja bem escrito. Não obstante Nietzsche no “Ecce Homo” fala que não quer virar ídolo (santo) nem quer ser mal compreendido:


Sinto uma angústia aterradora de que, um dia, me venham a canonizar; adivinhar-se-á porque é que antes público este livro; ele impedirá que comigo se cometam patifarias... Não quero ser santo algum, prefiro antes ser um arlequim...[1] (Ecce Homo)


Mas ele escreveu de forma aforismática, ou seja, seu estilo revolucionário deu muita margem para más interpretações e implicações drásticas.


Vejamos por exemplo o conceito de niilismo: Ele usa um conceito filosófico que para ele é o contrário do utilizado pela filosofia da época e ele não diz para ninguém que esta invertendo o conceito. O que mostra que a escrita aforismática e rebuscada foi algo proposital é que quando seus textos foram investigados pelos bibliotecários italianos (Giorgio Colli e Mazzino Montinari) ficou claro que os rascunhos para seus livros eram claros no que ele queria dizer, mas os livros em si não eram claros. Tanto foi assim que além dos bibliotecários, o Deleuze deu uma interpretação para o niilismo de Nietzsche dividindo em quatro tipos.



Nietzsche e os pós-modernos


Para Nietzsche não há fatos, apenas interpretações, nossa cabeça interpreta, mas não existe um mundo comum, concreto a todos. Aliás, ele tinha certa aversão por tudo que era comum, que era do povo, era baixo, e empobrecia a humanidade. E logicamente uma aversão ao comunismo que estava surgindo naquela época. Isto ajudou a colocar Nietzsche como um dos que mais ajudaram a disseminar uma visão que seria entendida mais de um século depois como pós-moderna. A pós-modernidade defende o relativismo, ou seja, não existe mais uma verdade absoluta (Afinal Deus está morto), o que existe são várias visões de mundo que devem conviver conjuntamente e conflituosamente. As visões de mundo são o mais importante, mas não podem ser discutidas sobre uma avaliação que vale para todas ou para mais de uma. O problema do relativismo é que podemos ter teorias defendendo qualquer prática, desde o escravismo até renda mínima cidadã.

Uma pergunta fundamental é: a quem servem as ideias de determinado pensador?

Os pós-modernos defendem que cada grupo (tribo) tem sua verdade e coloca para fora a ontologia (os valores). Assim a ciência ficaria isenta de valores. O problema é que esta tarefa é impossível, pois dada uma sociedade formada pelos tais grupos a ciência utilizaria teorias que dão privilégio para alguns valores (verdades) em detrimento de outros valores. Indo além, a ciência daria privilégio aos valores da classe dominante, uma ciência útil para aquele 1% dominante da população, em detrimento dos valores dos outros grupos. Não apenas a ciência, mas veja o movimento feminista, nasceu com uma proposta política de igualdade de direitos, e depois de salários equivalentes entre homens e mulheres nos últimos anos parece ter se perdido da sua proposta inicial emancipatória para defender mais uma visão fragmentada de mundo.


Uma pergunta fundamental é: a quem servem as ideias de determinado pensador? A quem serviu as ideias de Nietzsche. Temos duas respostas: primeiro durante o nazismo alemão onde sua irmã associou o pensamento dele com uma prática política radical. E depois com o relativismo e pós-modernismo. Isto nasce da seguinte constatação: Para o bigode a verdade está morta, assim como Deus. Como não há verdade deve-se colocar alguma coisa no lugar. Esta coisa Nietzsche chama de Devir, mas no caso dos pós-modernos e da má interpretação coloca-se duas outras coisas relacionadas: a verdade relativa (relativismo) e o pragmatismo. Como no relativismo os grupos não têm como travar diálogo e resolver suas diferenças, vão para a política que já tem sua distribuição de poder dada (e estabelecida) para determinado grupo de forma desigual. E na política a questão não se resolve, ou melhor, se resolve para a visão de mundo já estabelecida na política (normalmente a o grupo dominante). Este grupo normalmente é mais conservador. O que queremos dizer é que o relativismo limpa o terreno para políticas não muito populares como austeridade fiscal e o neoliberalismo econômico. É uma teoria que no fundo tira a voz dos mais pobres no jogo político.



A segunda é o pragmatismo que troca a verdade pela utilidade, uma teoria tem que ser útil. Temos que aceitar as práticas do mundo social, ou seja, aceitar aquilo que nos faz transitar no mundo assim como ele nos aparece. Vale lembrar que essa prática (utilidade), não é a mesma da segunda tese sobre Feuerbach. Dado que essa utilidade está inserida em uma sociedade capitalista e a utilidade das teorias é uma utilidade para o capitalismo, ou seja, o que é útil para a reprodução do capital. Ao levar em consideração a luta de classes e o conflito de valores é possível ver que a utilidade, assim como outros valores, não são abstratos. Mas algo útil para a classe dominante. Assim, vemos como a filosofia do Bigode, que pretendia libertar o potencial humano, é utilizada para aprisionar esse potencial por meio do relativismo dos pós-modernos.


Um moralista sem moral (ou um imoralista)


O mundo não se move por moralismos ou falta de moralismo, talvez até se mova mais pela falta de moral do que pela moral (Maquiavel que o diga).

Mais uma vez podemos observar as implicações da filosofia Nietzscheana e de sua escrita aforismática e assistemática. A segunda tese sobre Feuerbach de Marx nos ajuda ver como funciona a relação entre as ideias e o mundo:


“A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica.”


Grosso modo ele está dizendo que testamos nossas ideias na prática, no mundo. As ideias tem sua objetividade, não existe o mundo de um lado e do outro as ideias. As ideias fazem parte do mundo. O complicado no Bigode é que ele dizia que o mundo ainda não estava preparado para as ideias dele. O bichinho nasceu póstumo. Vejamos um exemplo de má interpretação: Ao falar de amor-fati Nietzsche abre espaço para que o mundo como ele é não mude, pois a solução do niilismo, do ponto de vista individual, é o amor fati. Amar os acontecimentos do mundo como eles são e não ter ideias que vão além deste mundo, pois o ideal é inalcançável. Mas isto abre espaço para um mundo conservador, se amamos o mundo como ele é, estamos a um passo de não desejar nem agir para que ele mude. Isto ajuda o pensamento intencional do relativismo de tirar a voz dos pobres. O problema da pobreza cairia neles próprios que não poupam para saírem da sua situação. Este é um argumento comum que coloca um problema social para ser resolvido no âmbito individual. Pior ainda, o pobre ao escolher não poupar sua renda escassa e fazer uma gastança continua sendo pobre. Temos então um problema moral. Observe como o pensamento de Nietzsche acaba sendo distorcido na pós-modernidade para ser (e servir) ao contrário da intenção do autor.


O mundo não se move por moralismos ou falta de moralismo, talvez até se mova mais pela falta de moral do que pela moral (Maquiavel que o diga). Vendo aqui a moral como uma avaliação sobre o mundo e as práticas humanas no mundo, indicando as que devem ser praticadas e as que não devem ser praticadas.


O amor fati abre espaço para uma desistência da luta por um mundo melhor. Tudo bem, o mundo melhor é um idealismo e Nietzsche era contra, mas e nossas lutas diárias? Temos uma noção de que para alcançar um objetivo temos que exercer uma prática, um comportamento intencional, que supomos que irá nos levar para próximo deste objetivo. Então se estudamos para uma prova e somos reprovados devemos amar ser reprovados (amor fati). Mas amar ser reprovado cria uma tendência a amar não fazer esforço (o comportamento intencional) para ser aprovado ou amar o fato de que a reprovação mostra que ainda podemos melhorar e devemos nos esforçar. A filosofia de Nietzsche abre espaço para tais interpretações e as pessoas deveriam ser advertidas disto desde o início.



Os Méritos do bigode


A maioria popular de leitores que encontramos e suas errôneas interpretações se assemelham com o desperdício de dar pérolas aos porcos.

Contudo, entretanto, todavia tenha calma leitor. Tenha fé, ou melhor “dance a beira do abismo conosco e com o bigode”. Ele tem seus méritos e não são pequenos. No entanto, em decorrência da facilidade que encontramos para realizar más interpretações os valiosos méritos da filosofia nietzschiana ainda são pouco conhecidos.



Podemos citar o campo psicológico como sendo um dos que mais foram presenteados por suas ideias e críticas e curiosamente sua filosofia não goza desse reconhecimento pelos profissionais da área. Muito raramente na graduação é possível encontrar alguma referência de suas obras. No entanto, todo estudante ou profissional já ouviu falar em algum momento que a Psicologia é uma ciência múltipla. Dado a complexidade do seu objeto de estudo há também uma gama de abordagens e correntes teóricas que se complementam e se contradizem. A ciência psicológica, portanto e ao mesmo tempo por tão pouco, já se enquadra dessa forma no modo nietzschiano de ver o mundo, o qual enaltece a multiplicidade das coisas.


Pode-se dizer que Nietzsche é um autor de pouco privilégio na graduação em Psicologia, mas aqueles que se aprofundam nas principais correntes teóricas, entre elas psicanálise e fenomenologia existencial, acabam por aportarem de cheio no campo nietzschiano, especialmente porque toda sua filosofia é uma grande afirmação da vida, um antídoto contra o adoecimento. E promover a saúde, cuidar da existência é o trabalho de todo psicólogo.


Sabe-se que o pai da psicanálise, Sigmund Freud, disse que nunca havia se dedicado ao estudo da obra nietzscheana, porém em seus textos publicados em vida e correspondências pessoais tornadas públicas após sua morte, encontram-se citações diretas ao filósofo. Há ressalvas na total semelhança entre alguns conceitos de Freud e Nietzsche, pois observa-se numa análise mais delicada que as interpretações diferem no íntimo e na finalidade do sentido de temas em comum. Mas podemos aproximar o conceito de vontade de potência nietzscheano com o de pulsão freudiano. De modo geral esses conceitos dizem respeito a forças íntimas que influenciam o comportamento e a personalidade da pessoa. Mas a vontade de potência de Nietzsche vai muito além do humano e se estende ao campo da natureza, enquanto que a pulsão de Freud diz respeito a uma força que habita a estrutura psíquica do homem, denominada inconsciente.


Essa estrutura, o inconsciente, também apresenta semelhanças com as postulações encontradas na obra de Nietzsche. Freud aponta que os acontecimentos e traumas vivenciados pela pessoa são recalcados nessa estrutura, podendo ser fonte de adoecimento e direcionamento da estrutura clínica. Isso está posto no conceito de ressentimento visto por Nietzsche, que seria a fonte contaminadora do caos necessária a ação criadora da “grande saúde” e da vida.


Ainda é gritante que ambos os autores se dedicaram ao estudo da moralidade cristã. Nietzsche tem como tarja de identificação geral a frase “Deus está morto” e o Anticristo como obra de ataque direto ao cristianismo por sua ação incapacitante na vida. Já Freud, dentre outros, escreveu o Futuro de Uma Ilusão, Totem e Tabú, Moisés e o Monoteísmo no qual analisa a religião e o cristianismo como fontes de consolo e sublimação para sentimentos pueris, bem como raiz de repressões sexuais causadoras de transtornos psicológicos.


Entre a psicologia fenomenológica existencial e a filosofia nietzschiana a aproximação se torna mais delicada, mesmo porque não existe uma unidade nesse campo, que tem como principais teóricos Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty. Mas convenhamos que também não se pode ler Nietzsche sem as ressalvas de seus momentos existenciais e suas várias faces. Contudo nos apontam Boublil e Daigle em Nietzsche and Phenomenology que algo faz com que todos “vejam alguma inclinação no compromisso de compreender e decifrar o mundo e o ser humano nele em termos de subjetividade, forças vitais e potência (poder)”.


Em fenomenologia se fala em intencionalidade na compreensão do mundo e em toda obra nietzschiana nos deparamos com suas postulações a respeito das “interpretações dos fatos” e os valores morais subsidiando o que se observa e se apreende na vida.


Ainda falando em conhecimento tanto na fenomenologia existencial como na filosofia de Nietzsche há uma forte crítica sobre o racionalismo positivista que toma o corpo/sentimento como fonte impura. Na fenomenologia o sujeito se coloca em relação vivencial com o objeto e em Nietzsche o corpo é sábio e criador de sentidos. Na sua crítica a racionalidade, ao objetivismo e a lógica, Nietzsche em Humano, Demasiado Humano ressalta que “Mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é, de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas.”


Em uma bela leitura da filosofia nietzschiana e suas aplicações em psicoterapia, Fonseca em Gestalt Terapia Fenomenológico Existencial (2005) direciona uma aproximação quando se fala em um posicionamento da vida que valoriza o instante presente. Na fenomenologia existencial fala-se em presença, ser no mundo, existência que acontece agora, afetividade no que é vivido espontaneamente, atualização no instante, afirmação do fluxo, abertura para as possibilidades. E em Nietzsche observamos a filosofia do Devir, que enaltece a arte e a criação, em que o sujeito cria o mundo e a si mesmo abrindo o leque das realidades impossíveis, em que o novo se encontra num eterno retorno, em que se afirma a vida em todo o seu potencial.


Na psicoterapia fenomenológico existencial o sujeito vivencia momentos de aceitação incondicional do seu ser no mundo, se atualiza na vivência dos fatos, cria a si mesmo como obra de arte e afirma a vida. Entra no setting terapêutico de mãos dadas com Dionísio, se perde no âmago da desagregação e da morte para reencarnar com novos sentidos e experiências, numa afirmativa vital dos acontecimentos (FONSECA, 2005). Em muitos casos o psicoterapeuta recebe o cliente em consultório e observa que o adoecimento é fonte de um instante congelado e revivido (ressentimento), em que não se deu o processo de esquecimento, em que não se operou uma plasticidade capaz de recriar o afeto e transformá-lo em algo potente e que afirme a vida. Nietzsche em Genealogia da Moral (2009) enfatiza que "nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhum gozo presente poderiam existir sem a faculdade do esquecimento".


O que se observa é que a filosofia de Nietzsche é um tesouro num baú sem fundo e sem dúvidas traz contribuições infinitas para a existência. Mas necessita ainda ser descoberto, pois a sua riqueza, por enquanto, pertence a poucos. A maioria popular de leitores que encontramos e suas errôneas interpretações se assemelham com o desperdício de dar pérolas aos porcos.


Por fim, parece sina que os grandes pensadores ao longo da história sofram com a idealização, a santificação, o preconceito e a distorção de suas ideias. É comum que seus legados em algum momento sejam utilizados para justificar atos desprezíveis. No caso de Nietzsche a sua escrita um tanto irresponsável, na medida em que se utiliza de metáforas para tratar temas muito relevantes na vida, foi um prato cheio para as implicações do não entendimento, incluindo a decadente e trágica apropriação nazista. No entanto culpá-lo pela ignorância ou má fé de seus discípulos é também inapropriado. No cerne principal de sua obra está expressa a necessidade do crepúsculo dos ídolos, da morte dos reis. Era desejo de Nietzsche que o Homem tornando-se potente, super homem, pudesse caminhar inventando seu próprio caminho, tornando-se o mestre de si mesmo.


[1] Ecce Homo. PORQUE SOU UM DESTINO I.



 
 
 

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